Quando publicou o “Manifesto do surrealismo”, em outubro de 1924, o escritor e poeta francês André Breton tinha muito a dizer, elaborar e sonhar sobre um movimento que fez parte das rupturas e dos “ismos” que abalaram a primeira metade do século XX, cujas reverberações sentimos até hoje.
Mas, num nível popular o seu “legado” mais disseminado (e maldito) é o uso a torto e direito da corruptela “surreal”, adjetivo para designar qualquer coisa que “causa estranheza”, segundo o dicionário “Michaelis”, ou aquilo “que pertence ao domínio do absurdo”, de acordo com o “Houaiss”. Experimente rolar os feeds de redes sociais ou sites de notícias, e logo você encontrará algo ou um acontecimento “surreal”, geralmente acompanhado de um tom de indignação ou estupefação.
Nesse cenário, chega às livrarias do Brasil o volumoso “Manifestos do surrealismo” (ed. 100/cabeças, 608 págs., R$ 198), que reúne os textos fundamentais de Breton em novas traduções e com novas notas, além de textos críticos de autores ligados ao movimento surrealista internacional.
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A caprichada edição conta com uma publicação inédita e valiosa de imagens dos manuscritos do primeiro “Manifesto”, cujos bastidores envolveram uma peregrinação da editora Ameli Jannarelli por labirintos burocráticos reais e virtuais em Paris, como ela relata em entrevista nesta reportagem.
O “Manifesto” requer concentração, uma leitura atenta, um estado diferente da distração com que turistas de museus assimilam rapidamente a imagem de relógios derretidos de Salvador Dalí.
No texto, Breton, em vez de simplesmente lançar palavras de ordem de manifestos — como Marinetti ou Oswald de Andrade —, ou estabelecer as diretrizes de uma vanguarda artística, está falando de nossa relação (um tanto deturpada) com o mundo.
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Em tom que exala certa melancolia, ele traça o retrato de uma humanidade insatisfeita com sua sorte, que perdeu contato com um mundo muito mais rico que um dia conheceu durante a infância. As demandas do cotidiano, da vida prática, tornaram o homem incapaz “de se achar à altura de uma situação excepcional como o amor”.
Num aceno ao que na arte moderna do começo do século XX seria o elogio ao “primitivo”, ao “infantil” ou aos “loucos” (Picasso, Paul Klee, Juan Miró etc.), Breton escreve que “resta a loucura”, ainda que não defenda que nos rendamos a ela, como um espaço possível da imaginação, da liberdade perdida.
Com uma leitura de Freud contestada por psicanalistas há tempos, Breton cita o autor de “A interpretação dos sonhos” (1900) para tecer considerações sobre o inconsciente. A questão que pode ser colocada é se a vida de vigília ou a vida onírica é que constitui a vida de fato. Ou se existe uma outra via, uma outra realidade a ser constituída a partir dessas ilhas, um projeto futuro.
No plano artístico, tal projeto utópico resulta na “escrita automática”, em que o inconsciente ditaria um texto, que fluiria diretamente, sem o controle da razão ou de construções estilísticas do autor. O próprio “Manifesto”, em princípio, foi redigido como um prefácio para “Peixe solúvel” (1924), que contém textos dentro dessa proposta e faz parte do volume da 100/cabeças.
No plano político, a aproximação do surrealismo com o comunismo foi tensa desde o começo. No “Segundo manifesto do surrealismo” (1930), Breton escreve: “Nossa adesão ao princípio do materialismo histórico… não há meio de jogar com as palavras. Se isso só dependesse de nós — quero dizer, desde que o comunismo não nos trate somente como animais curiosos destinados a exercitar nas suas fileiras o embasbacamento e a desconfiança —, nós nos mostraríamos capazes de cumprir, do ponto de vista revolucionário, com nosso dever”.
Dessa maneira, o surrealismo de Breton é muito mais uma forma de viver a vida, de reconfigurar o cotidiano, quase uma proposta do desenvolvimento de uma nova habilidade cognitiva (se adotássemos a tendência tão contemporânea de catalogar e “patologizar” comportamentos desviantes da norma), do que uma vanguarda artística de livros, obras de arte, filmes etc. comemorada e celebrada em museus em seu centenário. Por isso, o surrealismo segue vivo.
Leia a seguir a entrevista com Ameli Jannarelli, a fundadora da 100/cabeças, editora dedicada a autores ligados ao surrealismo.
Valor: Você poderia comentar como foi a gênese deste “Manifestos do surrealismo” (lançado pela 100/cabeças)? Foi, por exemplo, muito complexo conseguir publicar os manuscritos do primeiro “Manifesto surrealista”?
Ameli Jannarelli: A edição dos “Manifestos do surrealismo” da 100/cabeças não é a primeira a ser publicada no Brasil; antes dela, houve a edição da Brasiliense (que não contemplou o texto de escrita automática “Peixe solúvel”, entre outros) na década de 1980, e outra da Nau, nos anos 2000, ambas esgotadas. A diferença entre as primeiras edições e esta última, de 2024, é que a 100/cabeças é uma editora voltada para o movimento surrealista, e não poderíamos deixar fora do catálogo uma obra importante como essa; além disso, tomamos como base os textos selecionados pelo próprio André Breton para a edição definitiva dos ‘Manifestos’, que foi publicada em 1963 por Jean-Jacques Pauvert, na França. As traduções e notas de Marcus Rogério Salgado e Diogo Cardoso — que fazem parte do movimento surrealista no Brasil — são inéditas, assim como os textos que compõem o aporte crítico e que foram redigidos, a nosso pedido, por figuras como Michael Löwy, Annie Le Brun, Laurens Vancrevel, Ron Sakolsky, Georges Sebbag e outros membros do movimento surrealista internacional, como os grupos de Paris e Madri e também o grupo brasileiro DeCollage. Como você pontua, nossa edição também é complementada pelos manuscritos do primeiro “Manifesto”, e sim, consegui-los não foi nada fácil. Esse manuscrito, de 1924, havia ficado com Simone Kahn, primeira mulher de Breton, que o vendeu para um colecionador anos depois da morte do autor. No entanto, esse documento — que é considerado um tesouro nacional — foi recuperado pelo governo francês e vem sendo mantido pela BNF, a Biblioteca Nacional da França. Devido ao seu estado de conservação, o manuscrito não havia sido digitalizado pela instituição e era mantido em arquivo. Para conseguirmos essa cópia, entrei em contato com Aube Elléouët, filha de Breton, por meio de uma carta (Aube não usa e-mail ou outros meios eletrônicos de comunicação). Generosamente, ela nos enviou, também por carta, uma autorização para a utilização dos manuscritos em nosso projeto. Munida desse documento, assim como do contrato correspondente para a publicação do livro no Brasil, fui pessoalmente até a BNF, onde peregrinei por muitos departamentos, pela sala Richelieu, sala Oval, sala Labrouste, até finalmente ser encaminhada para a Divisão de Manuscritos e Obras Raras, onde me foi informado que o documento não estava em condições de ser digitalizado. Inconformada, segui enviando e-mails e solicitando ajuda de conhecidos em Paris (inclusive do galerista que ficou responsável por leiloar parte do acervo de Breton). Toda essa insistência culminou na restauração e digitalização do documento — que chegou a ser também utilizado por uma editora na França — que ilustra hoje a edição da 100/cabeças.
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Valor: O primeiro “Manifesto” é mais conhecido, diferentemente do segundo e terceiro “Manifestos”. Quais camadas de entendimento os outros textos originais presentes no volume acrescentam?
Jannarelli: O primeiro “Manifesto do surrealismo”, redigido em 1924, é o mais conhecido, e é erroneamente tomado por um manifesto totalmente artístico, de “vanguarda”, quando na realidade ele estabelece as bases do movimento surrealista, que se consolidaria nos anos seguintes, não apenas no campo das artes, mas também no campo político, filosófico etc. O “Segundo manifesto” é menos conhecido e menos palatável que o primeiro por conta de sua alta carga política e também por conta das tensões internas do movimento naquele momento. É um texto mais combativo, mais agressivo até. O intitulado “Prolegômenos a um terceiro manifesto do surrealismo ou não” foi redigido no pós-guerra, por um Breton mais maduro, vivendo no exílio, que traz à tona seu interesse e pesquisas sobre ocultismo, sua desilusão com a realidade presente e suas incertezas com relação ao futuro. Cada um dos manifestos que se seguiu ao primeiro representa, no entanto, momentos de viragem no pensamento surrealista, e devem ser lidos com o mesmo interesse que usualmente se devota ao primeiro “Manifesto”. Além disso, os outros textos de Breton que acompanham os manifestos (“Carta às videntes”; “Posição política do surrealismo”; “Do surrealismo em suas obras vivas”) complementam e enriquecem a compreensão do pensamento surrealista, mesmo — são também manifestos.
Valor: O que você diria para quem conhece apenas o primeiro “Manifesto” ou a quem associa o surrealismo apenas aos quadros de Salvador Dalí? O que você aconselha para um leitor mais ou menos novato que quer adentrar o universo surrealista?
Jannarelli: Diria para ler os manifestos, mas não só! O surrealismo nunca foi — e nunca será — uma “vanguarda”, uma escola, e nem se resume à sua produção plástica. Muitas vezes, o leitor se deixa levar pelas opiniões de quem pouco ou nada leu do surrealismo (DO surrealismo não é a mesma coisa que SOBRE o surrealismo!). O movimento produziu e produz obras de diversas naturezas: ensaios, poemas, peças teatrais, críticas, cinema, narrativas, relatos de viagem ou autobiográficos, tracts (manifestações coletivas que retratam o pensamento do grupo ou parte dele a respeito de temas urgentes) e, claro, obras plásticas. O catálogo das edições 100/cabeças traz alguma amostra dessa vasta produção, sempre complementada por notas e textos que buscam situar o leitor no contexto histórico, político e social da época, além de apresentar a própria natureza poética dessas obras. Costumamos dizer que não existe “poesia surrealista”, “arte surrealista”, mas poesia e arte FEITA POR surrealistas. Aliás, falando em Dalí, Breton criou um anagrama sobre ele: SALVADOR DALÍ = AVIDA DOLLARS — isso já diz muito!
Valor: Quais são as “informações equivocadas e preconceituosas” que são propagadas sobre o surrealismo? Houve novos equívocos em 2024, no centenário do “Manifesto”?
Jannarelli: A lista de informações equivocadas e preconceituosas é grande! Para citar as mais usuais, eu diria que chamar o surrealismo de “vanguarda”, de “herdeiro do dadaísmo” ou de movimento “de homens” — desde 1919 as mulheres são importante presença no movimento (nada a ver com ser “objeto” ou “musa”), e desde então sua participação só vem aumentando — já escrevi alguns textos sobre o tema e também falei sobre o assunto na jornada de estudos que foi realizada na Unesp, no campus de São José do Rio Preto, em 2024. Outro equívoco bastante comum é atribuir o termo “surreal” a situações esdrúxulas, escabrosas, nonsense… A “surrealidade” é a busca pelo “reencantamento do mundo”, nas palavras do nosso amigo surrealista Michael Löwy.
Valor: O surrealismo está vivo? Onde? Qual seu legado e sua importância nos dias de hoje?
Jannarelli: O surrealismo vive! Desde 1919, o surrealismo é um movimento constante não apenas na França, mas também na Espanha, Estados Unidos, Canadá, Argentina, Brasil, Chile… Não há como se falar em “legado” do surrealismo, ele é um movimento de busca permanente, atento sempre às questões sociais e políticas, ou seja, do humano em si e, portanto, atuais. Citando Breton, “o surrealismo é o que será”!
Fonte Agência Brasil