Invisíveis na primeira letra – Sobre as invisibilidades dentro e fora da comunidade LGBTQIA+

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*Por Ana Carolina Gozzi

Quando junho chega, vitrines se enchem de arco-íris, logotipos mudam de cor e a palavra “orgulho” surge como se, sozinha, desse conta de tudo. É bonito. Quase comovente. Mas quem vive a pauta no dia a dia sabe: por trás do marketing colorido, persiste uma hierarquia silenciosa — onde alguns ganham o holofote, e outros seguem no rodapé da sigla.

Em 2024, o Brasil manteve um dado brutal: foi, pelo 16º ano seguido, o país que mais matou pessoas trans e travestis no mundo, segundo a ANTRA. Foram 122 assassinatos — a maioria de mulheres trans, negras e nordestinas. Um retrato explícito de como a transfobia continua sendo a ponta mais aguda da violência de gênero no país.

Mas a violência nem sempre é tão visível. Nem sempre é física. Às vezes, ela opera no silêncio. No apagamento. Na seleção de quais vozes ganham holofote, e quais são fetichizadas, ridicularizadas, esquecidas.

É aí que entra o L. Que abre a sigla, mas raramente abre a conversa. Mulheres lésbicas continuam sendo ignoradas dentro e fora da comunidade. Invisibilizadas nos debates, objetificadas pelo olhar masculino, silenciadas em espaços que, teoricamente, também deveriam ser seus.

Cresci acreditando que o mundo estava mudando. E estava. Mas bastou começar a circular por espaços da diversidade para perceber: as mulheres ainda falam mais baixo. Ou melhor, quase ninguém escuta.

Talvez você não saiba, mas 79% das lésbicas brasileiras já sofreram algum tipo de lesbofobia, segundo o I LesboCenso Nacional, realizado por mais de 20 coletivos com apoio da Fiocruz. E 73% relatam medo ou constrangimento ao revelar sua orientação sexual em consultas médicas. Em 2025.

Essa invisibilidade não se restringe às conversas. Ela anda pelos corredores das empresas, onde lésbicas representam só 1,5% da força de trabalho formal, segundo a Gestão Kairós. Em cargos de liderança, são apenas 0,8%. Para muitas, o armário não é escolha. É escudo. Uma defesa contra o deboche, a demissão, o silêncio.

Na política, o buraco é ainda mais fundo: quem são as mulheres lésbicas que marcaram o Congresso? Difícil lembrar. Sabemos de cor os nomes dos homens gays que romperam barreiras — e que, sim, merecem reconhecimento. Mas isso não justifica o apagamento das mulheres lésbicas nesse contexto.

E se o silêncio já machuca, ele também mata. Entre janeiro e agosto de 2023, foram registradas 5.036 denúncias de violações de direitos contra lésbicas no Brasil, segundo a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos. Cinco mil vezes em que amar outra mulher foi motivo para apanhar, ser expulsa, ignorada.

Você já ouviu dizer que São Paulo tem a maior parada gay do mundo? Pois é. Ela não é gay — é da comunidade inteira. Mas por que os homens gays ainda são, em sua maioria, o rosto dos movimentos LGBTQIA+? A resposta é desconfortável, mas necessária: como uma grande amiga trans me disse uma vez, “porque eles ainda são homens”. E o machismo, infelizmente, também existe dentro da comunidade. Opera nas escolhas, nos espaços, nas falas que se repetem — e nas que nunca são ouvidas.

Mesmo assim, ainda há quem diga que “hoje em dia tudo é aceito”. Será? Pergunte às mulheres que precisam recorrer à Justiça para registrar o filho com o nome das duas mães. Porque a inseminação caseira ainda não é reconhecida oficialmente no país.

Se ser mulher já exige sobreviver ao que não se vê — o comentário que fere sem xingar, o olhar que julga sem dizer — ser mulher lésbica e/ou trans é ter que lutar até dentro da própria trincheira. Justificar presença em espaços que já deveriam ser seus. E isso não só cansa: esgota.

Ainda assim, tem resistência. Tem coletivo, roda de conversa, bar, podcast, feira. Tem coragem abrindo caminho onde antes só havia muro. E tem quem questione: “precisa mesmo de protagonismo específico?”. Eu devolvo: por que ainda é tão difícil admitir que até na diversidade há hierarquias? Que algumas vozes foram ensinadas a se calar?

Junho é o mês do orgulho. Mas orgulho sem escuta é só vitrine. Sem representatividade, vira performance. Por isso, mais do que pintar a logo de arco-íris, talvez seja hora de olhar pro L e pro T. Não só por começarem a sigla. Mas porque seguem, há muito tempo, no fim da fila.

*Ana Carolina Gozzi é co-CEO do Compre & Alugue Agora e fundadora da Artêmia Co. Advogada pela FAAP, especializou-se em Marketing Digital, Branding e Gestão de Pessoas, com pós-graduações em Diversidade & Inclusão e Direito da Mulher. Liderança jovem da Geração Z, impulsiona inovação no mercado imobiliário e na publicidade, unindo estratégia, criatividade e um olhar humanizado para transformar negócios. Ana Carolina Gozzi, co-CEO.




Fonte Startupi

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