Eu queria começar solar, como Gilberto Gil: “Este samba vai pra Dorival Caymmi, João Gilberto e Caetano Veloso”, depois seguir mandando “aquele abraço” pra Deus e o mundo. Deus, porém, anda meio sumido e o mundo, convenhamos, não tem merecido nem aperto de mão.
Começo, portanto, nublado: esta crônica vai pra você que no sábado, dia 16 de agosto, estava sentado na poltrona C23 do Teatro Sérgio Cardoso, em São Paulo, checando o WhatsApp a cada cinco minutos e atrapalhando com a luz do celular umas 30 pessoas que tentavam, atrás, à frente e ao lado assistir ao espetáculo do Grupo Corpo.
Talvez você não leia a Folha. Ou talvez até leia, mas passe batido por minha crônica. Por isso faço um pedido, ou melhor, uma súplica a todos que estejam lendo este texto e por acaso conheçam algum homem que foi ao Grupo Corpo no sábado, dia 16 de agosto de 2025. Pergunte se ele se lembra da poltrona em que estava sentado. Se disser C23 ou ao menos “sei lá, era lá na frente, à esquerda do palco”, por favor, mande a crônica pra ele. Não é por mim que suplico. É por toda a humanidade. Inclusive pelo homem da poltrona C23, pobre homem que não consegue passar duas horas, durante um espetáculo, sem fumar, quero dizer, cheirar, quero dizer, injetar, quero dizer, trocar mensagens de WhatsApp.
Da primeira vez que o clarão da telinha me arrancou das alturas celestiais a que haviam me catapultado os bailarinos, a família Pederneiras e a música do Arnaldo Antunes e do Tom Zé, me espatifando na realidade chã das redes sociais, eu ainda tentei racionalizar. Vai que é um obstetra? Vai que tem uma mãe doente?
Da nona vez, contudo, que o clarão da telinha me arrancou das alturas celestiais a que haviam me catapultado os bailarinos, a família Pederneiras, Cassi Abranches e Clarice Assad (era a segunda coreografia), pensei: se for obstetra, é o pior do mundo, se tiver uma mãe doente, é de uma ingratidão inaudita. Afinal, do lado de lá do telefone tem uma mulher parindo ou uma senhora morrendo e em vez de esse pazzo ir correndo ajudar a dar à luz ou a salvar a mãe das trevas fica aí, fazendo sofrer a parturiente, a moribunda e seis fileiras de poltronas a sua volta.
Pensei em cutucá-lo. Pensei em jogar meu chiclete no telefone. Pensei em dar um peteleco, por trás, em seu lóbulo. Pensei em atirá-lo num rio cheio de piranhas amarrado a um sangrento contra-filé. Quanto maior a engenhosidade da minha vingança, contudo, menos atenção eu prestava no espetáculo.
Ali na frente, a poucos metros de mim, estava uma das maiores instituições brasileiras, um desses raros motivos que ainda faz a gente se agarrar à esperança de que essa esbórnia tem salvação, de que o nosso sofrimento é fruto de uma máquina maravilhosa, porém desajustada, que se bem calibrada pode produzir Machados, Pelés, Gils e Grupos Corpo, mas a toda hora a tela do cretino inundava a plateia de escuridão, iluminando Elons Musks, Trumps, minions, tornozeleiras, Malafaias, “Magnitskies”, “VTNC”.
Sábado, 16 de agosto. Teatro Sérgio Cardoso. Grupo Corpo. Poltrona C23. É com você. Com você mesmo, queridão. Espero que repense suas prioridades, que procure um amigo, um psiquiatra, um grupo de apoio – e, por via das dúvidas, se for o caso, desejo vida longa ao bebê e estimo melhoras à senhora sua mãe. Sem mais, subscrevo-me.
Antonio Prata, C17.
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Fonte UOL